Na semana passada, muito se falou acerca da nova lei de lavagem de dinheiro sancionada pela Presidente Dilma, que incluiu o jogo do bicho como crime de lavagem de dinheiro. A alteração da lei endurece a punição para os envolvidos com o jogo ilegal. Os efeitos dessa nova lei começam a refletir de forma imediata. Mal a lei foi sancionada, diversos veículos de comunicação começaram a divulgar prisões de suspeitos de exploração de jogos de azar.
Com as devidas vênias da esfera penal, proponho uma discussão ainda mais interessante do que a questão da "tolerância" estatal ao jogo do bicho, sem entrar no mérito das vantagens e desvantagens de sua legalização ou criminalização.
Uma questão que surge de extremo relevo é a possibilidade ou não de haver vínculo de emprego entre o "banqueiro" e o apontador do jogo do bicho ou de qualquer pessoa que preste serviços ao dono da banca. Nos últimos anos, a Justiça do Trabalho vem recebendo cada vez mais pedidos de reconhecimento da relação de emprego em atividades ilícitas.
Tendo em vista a extensão territorial do Brasil e a diversidade cultural entre as regiões brasileiras, não existe unanimidade acerca do tema, surgindo várias correntes. Não obstante o entendimento do Tribunal Superior do Trabalho (TST) por meio da Orientação Jurisprudencial nº 199 da SDI-1, os Tribunais Regionais têm oscilado em suas decisões, ora reconhecendo o vínculo de emprego, ora decretando a nulidade do contrato de trabalho, mas condenando o empregador a pagar apenas os salários devidos ao trabalhador, e ainda há boa parte da jurisprudência rechaçando qualquer tipo de vínculo e direitos ao trabalhador em virtude da atividade ilícita.
O contrato de trabalho constitui espécie de negócio jurídico bilateral. Sendo assim, requer, para a sua validade, a observância de elementos essenciais. A ausência de qualquer desses elementos pode comprometer a existência ou validade do contrato de trabalho.
De acordo com o artigo 104 do Código Civil, para a validade do negócio jurídico mister estejam presentes os requisitos de forma concomitante: agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e forma prescrita ou não defesa em lei. Alem disso, o art. 166, II, CC/02 dispõe que é nulo o negócio jurídico quando for ilícito, impossível ou indeterminado o seu objeto.
Ora, por mais que o Estado e a sociedade "fechem os olhos" para a prática do jogo do bicho, fazendo com que a contravenção penal (e agora crime de lavagem de dinheiro) se trone letra morta, é de conhecimento de todos que tal prática constitui atividade ilícita. O objeto do contrato de trabalho não pode ser contrário à lei, à moral, aos princípios de ordem pública e aos bons costumes.
Além do jogo do bicho, são exemplos de contrato com o objeto ilícito:o médico que faz aborto ilegal em cínicas especializadas, a prostituta que vende o corpo em casa de lenocínio, o motorista de caminhão que faz transporte de carga contrabandeada, os que trabalham em rinhas de galos com vendas de rifas, o motorista de ônibus pirata, o contrabandista de animais em extinção, o trabalhador que exerce ilegalmente alguma profissão, o vendedor de produto receptado, o matador profissional, entre outros.
Como dito anteriormente, alguns Tribunais, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, pregam a validade do contrato de trabalho, em virtude da "tolerância" do Estado com esta atividade, apesar de ilícita. Argumentam ainda que a declaração de nulidade acarretaria em enriquecimento sem causa do "empregador". Defendem que o fato de o tomador de serviços explorar atividade classificada como contravenção penal não é suficiente para eximi-la de suas obrigações trabalhistas, quando evidenciada a relação de emprego.
Para os adeptos dessa corrente, o jogo do bicho é praticado em todo o território nacional, abertamente, e com a tolerância das autoridades, achando-se sua ilicitude inteiramente esvaziada pela falta de reação social. Alegam que em sendo a sociedade um organismo vivo e dinâmico, deve a lei amoldar-se aos novos costumes, já que existe para servir aos homens e não estes àquela. Sabe-se que "o jogo de bicho", bem como as loterias esportivas (federais/estaduais), loto, sena e outras espécies do gênero jogos de azar, constituem vícios fincados na vida dos brasileiros, residindo a diferença única e exclusivamente, no fato de serem todos eles permitidos por lei, exceto o jogo do bicho.
A prática do jogo de bicho não é censurada pela sociedade que não esboça qualquer resistência à exploração do mesmo, nem pugna pela punição de seus controladores. Na maioria das vezes, os "empresários" que exploram essa atividade o fazem sem nenhum receio das autoridades governamentais e policiais, que tudo veem e sabem e nenhuma providência adotam para elidir sua prática. Nesse sentido, defendem também que mesmo que o "empregado" tenha ciência do objeto ilícito de seu contrato de trabalho, esse tipo de atividade não decorre apenas de um livre consenso, de espontânea vontade, mas sim, de um impulso de necessidade de sobrevivência, de se ganhar o pão de cada dia de forma digna e "honesta". E essa situação não permite que o "empregado" questione a natureza da atividade desempenhada, ainda mais quando na aparência, pelo menos, tal atividade parece lícita porque aceita tacitamente pelo Poder Público.
Sustentam ainda que a admissão de ser ilícito o trabalho desempenhado nesse ramo de atividade, implicaria na aceitação do enriquecimento sem causa, condenado pelo nosso direito positivo, o qual não permite a ninguém tirar proveito de sua própria torpeza, além de fomentar a prática de atividades ilícitas em proveito apenas do empregador-contraventor.
JOGO DO BICHO. CONTEMPORIZAÇÃO DA ILICITUDE. RECONHECIMENTO DO VÍNCULO DE EMPREGO. EFEITOS. O estoicismo que impõe a nulidade contratual em razão da ilicitude do jogo do bicho, aqui na Paraíba, deve ser contemporizado, em face do beneplácito estatal, o que enseja a aplicação da teoria justrabalhista de nulidades. Ademais, o vínculo empregatício há de ser reconhecido para evitar o enriquecimento sem causa do contraventor. Ac. (unânime) TRT 13ª Região (RO 00236.2004.011.13.00-0), Rel. Juíza Hermenegilda Leite Machado, julgado em 09/03/05 e publicado no DJ/PB de 03/04/05.
Por outro lado, o entendimento de boa parte da jurisprudência e da doutrina é no sentido de que sendo ilícito o objeto, nulo será o contrato, e, consequentemente, não poderia produzir nenhum efeito. Nesse sentido posiciona-se Vólia Bomfim. Para a autora, o reconhecimento do vínculo de emprego é absurdo, "pois o Judiciário é o guardião da ordem moral e do direito e não pode aceitar tal negócio jurídico ilícito. Ademais, não se pode prestigiar o trabalhador que pratica o crime. Não é crível imaginar a procedência de um pedido de pagamento de salário de um matador que cobra pelo serviço (assassinato) já executado". E continua a magistrada: "Nulo o ajuste em virtude do objeto ilícito, nada é devido ao empregado, sequer os salários, pois não se pode 'compensar' trabalho ilícito se o empregado dele participou diretamente. Imaginem um assassino que pleiteia o pagamento do salário, porque de fato matou as pessoas indicadas pelo empregador durante aquele ano. Seria uma aberração o judiciário deferir os salários, sob o argumento de se evitar o enriquecimento sem causa" (CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. 5.ed. Niterói: Ímpetus, 2011, p. 583).
Há que se destacar que se a causa da relação é tipificada como ilícito penal, a conseqüência é a sua ineficácia jurídica, sob pena de estar também o Judiciário acobertando e favorecendo atividades ilícitas. Com efeito, o TST reiterou o seu entendimento, através da OJ nº 199 da SDI-1:
RELAÇÃO DE EMPREGO. JOGO DO BICHO. CONTRATO DE TRABALHO. NULIDADE. OBJETO ILÍCITO. CCB, ARTS. 82 E 145. CLT, ART. 3º.
É nulo o contrato de trabalho celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que subtrai o requisito de validade para a formação do ato jurídico.
PRECEDENTE: RR 309635/96 - EMENTA - DA NULIDADE DO CONTRATO DE TRABALHO - JOGO DO BICHO - Inobstante o jogo do bicho ser uma atividade difundida e amplamente praticada em todo o país, até tolerada com benevolência pelas autoridades policiais, o ilícito penal caracterizado como contravenção penal não está descaracterizado, sendo sujeito a punição prevista na legislação. O chefe de apuração do denominado jogo do bicho, exerce atividade ilícita, não havendo o que se cogitar em contrato de trabalho, porque ilícito o objeto e ilícitas as atividades do prestador, tomador de serviços. Assim, revela-se inaceitável que o Judiciário trabalhista, em total desarmonia com o disposto no art. 82, do Código Civil possa comungar que entre o reclamado e o seu
“chefe de apuração” exista típico contrato de trabalho ao amparo da CLT e legislação supletiva.”
Mesmo com a edição da OJ 199 da SDI-1, este entendimento não estava pacificado pela jurisprudência. Em 2006 foi suscitada pela SDI-1 a apreciação pelo Pleno do TST na forma de Incidente de Uniformização de Jurisprudência (IUJ), a fim de decidir-se pelo cancelamento ou pela manutenção da OJ 199. Nesta oportunidade, por maioria dos votos, o TST decidiu pela manutenção da OJ 199.
Nunca é demais lembrar de que trata-se de um ilícito penal. Não há norma que assegure o direito e, consequentemente, só poderíamos conceder algo pela inobservância dessa norma inexistente. Não há como abrir brecha nesse caso, pois se assim procedêssemos, teríamos de dar direito trabalhista ao menino que solta pipa nos morros para avisar aos traficantes da chegada de polícia. Além disso, o reconhecimento do vínculo de emprego em atividades ilícitas seria uma verdadeira afronta ao trabalhador que, necessitado de emprego, opta pela penosa busca por trabalho moral e legal, ainda que mediante um salário irrisório. Isso levaria à equiparação desse trabalhador honesto, que age nos termos da lei, com aquele que, muitas vezes em circunstâncias idênticas, opta pela contravenção ou pelo crime. Há que se lembrar que por trás do jogo do bicho existe toda uma atividade subjacente à esta prática ilícita, operando-se atividades ilegais de grande monta, como é o caso da lavagem de dinheiro, tráfico entre outros.
Além dessas duas correntes, há uma terceira, intermediária, que nega o vínculo de emprego, mas defere apenas os salários título de indenização. Para os adeptos dessa corrente, ainda que a atividade seja ilícita, seria incompatível com os princípios da primazia da realidade e da proteção negar, por completo, eficácia jurídica ao contrato celebrado entre as partes para coleta de apostas.
De acordo a teoria clássica das nulidades, é cediço que o ato absolutamente nulo deve ser ceifado em sua origem, de modo que, uma vez assim declarado, perde sua eficácia jurídica, com efeitos ex tunc. Em tal situação, as partes são remetidas ao estado anterior, restituindo-se-lhes os bens e valores que possuíam antes do advento do ato defeituoso. Ocorre que, no âmbito do Direito do Trabalho, esse retorno ao status quo ante se faz impossível, eis que, tendo se concretizado a realização dos serviços, não há como ser restabelecida a força despendida pelo trabalhador em prol do tomador dos serviços.
Destarte, esta corrente advoga no sentido de serem devidos somente os salários, mas a título de indenização. Como não se pode devolver ao obreiro a energia despendida em favor do empregador, reconhece-se àquele a contraprestação correspondente. E para que a invalidação do negócio jurídico não se converta em causa de enriquecimento ilícito para o empregador, a indenização cabível deve corresponder à totalidade dos salários a que o obreiro teria direito, relativamente ao labor prestado, com base no art. 182 do CC/02.
No que pese as embasadas e bem fundamentadas opiniões de renomados juristas, essas três correntes acabam por se tornarem injustas, seja por favorecer ainda mais o empregador-contraventor, beneficiando-o de sua própria torpeza e contribuindo para o enriquecimento sem causa deste, ou por conceder vínculo de emprego em atividade ilícita, ou apenas os salários em claro desrespeito à lei, à OJ 199 da SDI-1, e à própria moral.
Em primeiro lugar, cumpre destacar que o vínculo de emprego não pode ser reconhecido, uma vez que o art. 104, II do CC/02 exige para a formação do contrato, objeto lícito. Além disso, o art. 166, II, do mesmo diploma legal determina que é nulo o contrato quando o objeto é ilícito. O reconhecimento do vínculo significa que o próprio Judiciário está premiando o ilícito, o que se distancia de uma sociedade moral.
No tocante as decisões que não reconhecem o vínculo, mas concedem os salários a título de indenização com fulcro no artigo 182 do CC/02, se esquecem os ilustres julgadores do art. 183, CC/02 que excepciona a regra do art. 182, CC, prevendo que não terá direito à repetição aquele que deu alguma coisa para obter fim ilícito, imoral, ou proibido por lei. Sendo assim, se o trabalho é ilícito, o "empregado" não terá direito a postular o seu equivalente econômico, de acordo com o art. 883, CC.
Por outro lado, se mostraria injusta a decisão que simplesmente declarasse nulo o contrato de trabalho, sem que produzisse nenhum efeito. Se assim fosse, estaria se legitimando o enriquecimento sem causa, e fazendo com que o maior responsável pela atividade criminosa se beneficiasse de sua própria torpeza.
Uma solução mais justa, a meu ver, foi adotada pelo juiz Ari Pedro Lorenzetti, da 13ª Vara do Trabalho de Goiânia, no processo nº 803/2006-6. O magistrado aplicou ao caso o parágrafo único do art. 883 do CC, que dispõe que não terá direito à repetição aquele que deu alguma coisa para obter fim ilícito, imoral, ou proibido por lei. O que se deu, reverterá em favor de estabelecimento local de beneficência, a critério do juiz. Destarte, ainda que o objeto tenha sido ilícito, isso não autoriza o empregador-contraventor a auferir ainda mais vantagens.
Não obstante a nulidade do contrato, dele resultaram consequências práticas que não podem ser desconsideradas ao argumento de que o contrato de trabalho não gera efeitos jurídicos. O fato de o contrato ser nulo não autoriza o beneficiário a ficar com a prestação dos serviços para si, uma vez que houve o efetivamente o trabalho. As consequências jurídicas, no caso, não decorrem do contrato, mas do trabalho havido. O contrato, por sua vez, serve apenas de parâmetro para se chegar ao valor equivalente ao labor prestado.
Repita-se, a simples declaração de nulidade do contrato corrobora para o enriquecimento sem causa do empregador-contraventor, que é o principal responsável pela atividade ilícita.
Em consequência, só o obreiro, cuja culpa na ilicitude, no caso, é claramente menor do que a do empregador, é que pagaria pelo ilícito, enquanto o este último teria até maiores vantagens do que se exercesse de atividade lícita.
Desta feita, a solução mais justa ante a complexidade do tema é aquela que não beneficia nenhuma das partes, haja vista a ilicitude de suas atividades. Assim, nem o "empregado" tem o seu vínculo reconhecido e nem o "empregador" aufere maior vantagem em virtude do ilícito cometido.
Marina Quaglio