Resumo: Análise jurídica da interrupção da gravidez em caso de anencefalia face à propositura da ADPF 54, ajuizada no STF, em 2004. A anencefalia é uma má-formação que ocorre no fechamento do tubo neural. Em virtude disso, não há cérebro bem constituído no anencéfalo, motivo pelo qual a expectativa de vida dessas crianças é muito curta. Muitas mães, grávidas de anencéfalos, pleiteiam autorização judicial a fim de interromperem a gravidez, alegando a inviabilidade do feto. Nesses casos, existem dois direitos fundamentais em conflito. Sabe-se que o direito à vida é protegido constitucionalmente. Se por um lado há o direito à vida do feto, de outro há a dignidade da mãe. Conclui-se daí a complexidade do tema. Não obstante os impedimentos constitucionais, percebe-se a tendência do STF autorizar o aborto em caso de anencefalia, em claro desrespeito ao princípio constitucional da separação dos poderes.
O Código Penal Brasileiro, de 1940, proíbe a prática do aborto, tipificando-o nos arts. 124, 125 e 126. Entretanto, abre-se uma exceção, um caso de não punibilidade, no art 128 do CP (aborto humanitário e aborto necessário). O desenvolvimento tecnológico tem possibilitado o diagnóstico precoce de anomalias e má-formações, como a anencefalia, o que não era possível há 70 anos. É fato que há uma diferença marcante entre o passado e o presente. O anencéfalo, que antes só era conhecido na interrupção espontânea da gravidez, ou ao nascer, agora já pode ser diagnosticado logo na 10ª semana de gestação. Esse diagnóstico precoce coloca em discussão o que não seria sequer imaginado à época da promulgação do Código Penal: a questão da pertinência ou não da interrupção da gravidez em caso de anencefalia.
A vida humana se inicia com a concepção. É a partir desse momento que o indivíduo adquire o direito de ter sua vida protegida. E é a partir daí que o Estado deve criminalizar qualquer forma de atentado contra a vida. A Constituição Federal tutela o direito à vida em seu art. 5º, considerando-o como cláusula pétrea. Além disso, as normas infraconstitucionais também protegem os direitos dos bebês que ainda não nasceram. O Código Civil assegura os direitos do nascituro desde a concepção. O Código Penal tipifica o aborto como crime contra a vida. A Convenção Sobre os Direitos da Criança prevê que a proteção às crianças se dá antes mesmo do seu nascimento. E o Pacto de San José da Costa Rica, que possui status de norma supra legal garante o direito à vida desde a concepção.
Nesse sentido, o feto é dono dos mesmos direitos e garantias dos já nascidos, uma vez que há vida desde a concepção. Sendo assim, o nascituro possui tanto o direito à vida, com à dignidade. De acordo com a constituição, a dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil, e dessa forma, esse princípio é garantido a todos, sem nenhuma distinção.
O nascituro, como ser humano digno, deve ter todos os seus direitos respeitados. O anencéfalo, da mesma forma é portador dos mesmos direitos que um fetos saudável. A Carta Magna não faz qualquer ressalva quanto à viabilidade ou não do feto. E nem poderia, ante o princípio da igualdade. O direito à vida não pode estar condicionado à viabilidade do feto. Se assim fosse, chegaríamos a infeliz conclusão de que as pessoas "normais" possuem mais direitos do que as portadoras de alguma deficiência.
Ademais, o trauma por gerar um filho anencéfalo não justifica o aborto. Mesmo porque futuros traumas psicológicos, além de riscos à saúde da mãe, são inerentes à prática abortiva. Nesse sentido, interromper a gravidez por não estar gerando um ser "perfeito" é ato de egoísmo e vaidade. A sociedade deve abandonar os pensamentos de amor próprio, dando lugar ao amor ao próximo.
Marina Quaglio
(Texto extraído do artigo "O aborto em caso de anencefalia", parte do livro "A reconstrução do Direito: Estudos em homenagem a Sérgio Cavalieri Filho"
No final de 2011 tive o privilégio de ser convidada para participar da obra "A Reconstrução do Direito: Estudos em homenagem a Sérgio Cavalieri Filho", pelo professor Cleyson de Moraes Mello (coordenador geral).
Foi uma ótima experiência participar deste projeto em homenagem a esse grande jurista. O professor Sérgio Cavalieri Filho é Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, do qual foi presidente no biênio 2005/2006 (37 anos como Magistrado do TJRJ). Diretor-geral da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) no período de 2001 a 2004. Além de autor das obras: "Programa de Responsabilidade Civil", "Programa de Direito do Consumidor" e "Programa de Sociologia Jurídica"
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